20.1.08

Monólogo de Orfeu

Mulher mais adorada!

Agora que não estás, deixa que rompa

O meu peito em soluços! Te enrustiste

Em minha vida; e cada hora que passa

É mais por que te amar, a hora derrama

O seu óleo de amor, em mim, amada...

E sabes de uma coisa? Cada vez

Que o sofrimento vem, essa saudade

De estar perto, se longe, ou estar mais perto

Se perto, – que é que eu sei! Essa agonia

De viver fraco, o peito extravasado

O mel correndo; essa incapacidade

De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso

Que é bem capaz de confundir o espírito

De um homem – nada disso tem importância

Quando tu chegas com essa charla antiga

Esse contentamento, essa harmonia

Esse corpo! E me dizes essas coisas

Que me dão essa força, essa coragem

Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice

Meu verso, meu silêncio, minha música!

Nunca fujas de mim! Sem ti sou nada

Sou coisa sem razão, jogada, sou

Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice...

Coisa incompreensível! A existência

Sem ti é como olhar para um relógio

Só com o ponteiro dos minutos. Tu

És a hora, és o que dá sentido

E direção ao tempo, minha amiga

Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!

A beleza da vida és tu, amada

Milhões amada! Ah! Criatura! Quem

Poderia pensar que Orfeu: Orfeu

Cujo violão é a vida da cidade

E cuja fala, como o vento à flor

Despetala as mulheres - que ele, Orfeu

Ficasse assim rendido aos teus encantos!

Mulata, pele escura, dente branco

Vai teu caminho que eu vou te seguindo

No pensamento e aqui me deixo rente

Quando voltares, pela lua cheia

Para os braços sem fim do teu amigo!

Vai tua vida, pássaro contente

Vai tua vida que estarei contigo!


[Monólogo de Orfeu, Vinícius de Moraes]

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