31.12.08

Receita de Ano Novo

Para você ganhar um belíssimo Ano Novo

cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,

Ano Novo sem comparação com todo tempo já vivido

(mal vivido talvez ou sem sentido)

para você ganhar um ano

não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,

mas novo nas sementinhas do vir-a-ser, novo

até no coração das coisas menos percebidas

(a começar pelo seu interior)

novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,

mas com ele se come, se passeia,

se ama, se compreende, se trabalha,

você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,

não precisa expedir nem receber mensagens

(planta recebe mensagens? Passa telegrama?)

Não precisa fazer lista de boas intenções

para arquivá-las na gaveta.

não precisa chorar de arrependimento

pelas besteiras consumadas

nem parvamente acreditar

que por decreto da esperança

a partir de janeiro as coisas mudem

e seja tudo claridade, recompensa,

justiça entre os homens e as nações,

liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,

direitos respeitados, começando

pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um ano-novo

Que mereça este nome,

Você, meu caro, tem de merecê-lo,

tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,

mas tente, experimente, consciente.

É dentro de você que o Ano Novo

Cochila e espera desde sempre.


[Receita de Ano Novo, Carlos Drummond de Andrade]

25.12.08

Poema de Natal!


Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

[Poema de Natal, Fernando Pessoa]


18.12.08

Aos últimos dias...

Quando se quer bem a uma pessoa a presença dela conforta.

Só a presença: não é necessário mais nada.


[Graciliano Ramos]

16.12.08



Todas as pessoas do mundo sorriem no mesmo idioma.


[Morris Mandel]

9.12.08

Permanecer parcialmente uma criança é o que realmente é amadurecer.

[Jevgenij Aleksandrovitj Jevtusjenko]

8.12.08

Trate seus amigos como quando você faz seu retrato:
Coloque-os sobre a melhor luz.


[Jennie Jerome Churchill]

1.12.08

Que minha solidão me sirva de companhia.
Que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.

[Clarice Lispector]

28.11.08

Todos tentam realizar alguma coisa grande
não percebendo que a vida é composta de pequenas coisas.


[Frank A. Clark]

23.11.08



A alma não encolhe na chuva, mas sabe-se lá se resfria...

14.11.08

Conheço muitos que não puderam, quando deviam,
porque não quiseram, quando podiam.


[François Rabelais]

6.11.08

Silêncios

Os silêncios lembram-me, nada
os silêncios, nada me lembram
os silêncios, andam por ai
com passos certeiros de nada
o silêncio apaixona-me
apaixonam-me os silêncios
cruzar-me com nada
com a precisão de tudo ter.
Com a vontade de te ter em silêncio.
Ouvindo o teu arfar, na pele de nada,
sentindo o teu arrepio, nas mãos do silêncio
quebra, quebrado, quebradiço
arre, que é postiço, esse teu silêncio
que acaba de despertar um grito de odores
que se libertam em prazeres
que rodopiam, em gemidos
saem caricias de silêncios
saem fluidos de âmbar
não há grito, nem gemido
há um esgar, para matar
e o silêncio fica, todo embaraçado
no meio de nada, em ternuras violentas eu sei,
eu sei.... acontece

[Silêncios, Carlos Barros]

5.11.08

Cada um de nós é a causa de um momento.

[Baptista-Bastos]

4.11.08

Tá bem, todos nós vivemos a perigo,
mas meus males são os piores.
Acontecem comigo.

[Millôr]

3.11.08

Se você sorri quando não há ninguém por perto,
é porque está sendo sincero.

[Andy Rooney]

1.11.08

O amor nunca falha, e a vida não falhará
enquanto houver amor.
Seja qual for sua crença, ou sua fé, busque primeiro o amor.
Ele está aqui, existindo agora, neste momento
o pior destino que um homem pode ter
é viver e morrer sozinho, sem amor e sem ser amado.
O poder da vontade não transforma o homem.
O tempo não transforma o homem.
O amor transforma.


[Henry Drummond]

31.10.08

O amor e seus contratos

Tanto nas juras mais vivas
como nos beijos mais longos
em que perduram salivas
de outras paixões ainda ativas
sopro de angolas e congos,
eu sinto a turva incerteza
(ai, ouro de tredas lavras)
de enovelada surpresa
que põe tanto de estranheza
nos contratos que tu lavras.
Por mais que no teu falar
brilhe a promessa incessante
de um afeto a pendurar
até o mundo acabar
e mesmo depois – diamante
de mil prismas incendidos,
amarga-me o pensamento
de serem pactos fingidos
e nos seus subentendidos
não vi, Amor, valimento.
Experiência de escrituras,
eu tenho. De que me serve?
Após sofridas leituras
de ementas e de rasuras,
no peito a dúvida ferve,
se nos mais doutos cartórios
de Londres, londrina, Lavras
para assuntos amatórios,
teus itens são ilusórios,
só palavras e palavras.
As nulidades tamanhas
que te invalidam o trato
não sei se provêm de manhas
ou de vistas mais estranhas.
Serão talvez retrato
gravado em vento ou em sonho
como aéreo documento
que nunca mais recomponho.
São todas - digo tristonho –
feitas de sonho e de vento.

[O Amor e seus contratos, Carlos Drummond de Andrade]

30.10.08

Banho das seis



Que prazer te conhecer

Eu gostei do teu olhar
Colorindo a rua toda
Vi da passagem a luz do sol
De repente a devolver
Toda luz que vem da terra
Tem diferença entre ter
E fazer tudo rodar
Pela troca de harmonia
Hey, depois do banho das seis
Eu preciso te falar
Pra contar da nossa vida
Se todo mundo somos nós
Nossa força nossa voz

[Banho das Seis, Daniel Lucena - Expresso Rural]

29.10.08

O tempo passou...
Dizem que o tempo é remédio para tudo.
O tempo faz a gente esquecer.
Há pessoas que esquecem depressa.
Outras apenas fingem que não se lembram mais...

28.10.08

Só o fato de que o destino os tenha unido
não quer dizer que o destino tenha acertado.

[Terry Pratchet]

27.10.08

Eu posso resistir a tudo, exceto à tentação.

[Oscar Wilde]

26.10.08

Futuros Amantes

Mais uma obra prima de Chico, no vídeo extraído do especial que o filho do Sérgio Buarque de Holanda gravou para a Band, por ocasião do lançamento do ábum Paratodos em 1993, ele explica o momento de inspiração que o levou a criar a letra de Futuros Amantes, que tem a cidade maravilhosa como fundo e fala de um amor não correspondido, mas nos consola ao imaginarmos que um dia ele será usado...

Bela letra, linda canção!



"Eu tava mexendo no violão, começando a fazer a melodia, e a primeira imagem que apareceu foi exatamente esta: uma cidade submersa, isolada de tudo. Porque, cantarolando, parecia que a música queria dizer isso. Eu tinha que ir atrás da explicação dessa cidade submersa. Aí eu coloquei os escafandristas, e surgiu a história de um amor adiado, um amor que fica para sempre. Essa idéia do amor como algo que pode ser aproveitado mais tarde, que não se desperdiça. Passa-se o tempo, passam-se milênios, e aquele amor ficará até debaixo d'água. Um amor que vai ser usado por outras pessoas, um amor que não foi utilizado porque não foi correspondido, e então ele fica ímpar, pairando... Esperando que alguém o apanhe e complete a sua função de amor".


Não se afobe, não

Que nada é pra já

O amor não tem pressa

Ele pode esperar em silêncio

Num fundo de armário

Na posta-restante

Milênios, milênios

No ar


E quem sabe, então

O Rio será

Alguma cidade submersa

Os escafandristas virão

Explorar sua casa

Seu quarto, suas coisas

Sua alma, desvãos


Sábios em vão

Tentarão decifrar

O eco de antigas palavras

Fragmentos de cartas, poemas

Mentiras, retratos

Vestígios de estranha civilização


Não se afobe, não

Que nada é pra já

Amores serão sempre amáveis

Futuros amantes, quiçá

Se amarão sem saber

Com o amor que eu um dia

Deixei pra você


[Futuros Amantes, Chico Buarque]

25.10.08

Quantas vezes a vida nos revela
que a saudade da pessoa amada,
é bem melhor que a presença dela.


[Mario Quintana]

20.10.08

Podemos nos defender de um ataque
mas somos indefesos a um elogio.

[Freud]

13.10.08

Já pensou

Já pensou se eu nascesse no frio,
Já pensou se eu nascesse sem sala,
Já pensou se eu nascesse sem Sol,
Nascesse sem bola,
Sem Copacabana,
Já pensou se eu nascesse sem mar
Nascesse sem Rio ou sem a Bahia,
Já pensou se eu nascesse sem cor,
sem esse sorriso e essa alegria
Já pensou se eu não fosse essa graça,
não fosse essa raça, o que seria?
Já pensou se não fosse essa garra
e essa coragem e essa energia,
Já pensou se não fosse essa fé,
não fosse o que é, o que seria?
Já pensou esse País inteiro,
q
ue o melhor do Brasil,
é o povo brasileiro.

[Já pensou, Nizan Guanaes]

4.10.08

Felicidade

Felicidade foi embora
E a saudade do meu peito inda mora
E é por isso que eu gosto lá de fora
Porque eu sei que a falsidade não vigora

A minha casa fica lá detrás do mundo
Onde eu vou em um segundo
Quando começo a cantar
O pensamento parece uma coisa à toa
Mas como é que a gente voa
Quando começa a pensar

[Felicidade, Lupicínio Rodrigues]

2.10.08

Para o Zé

Eu te amo, homem, hoje como
toda vida quis e não sabia,
eu já amava de estremoso amor,
o peixe, a mala velha, o papel de seda e
os riscos do bordado, onde tem
o desenho cômico de um peixe
- os lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer te amo.
Teço as curvas, as mistas e as
quebradas, industriosa como abelha,
alegrinha como florinha amarela, desejando
as finuras, violoncelo, violino menestrel
e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito
pra escutar o que bate.
Eu te amo, homem, amo o teu coração,
o que é, a carne de que é feito,
amo sua matéria, fauna e flora,
seu poder de perecer, as aparas de
tuas unhas perdidas nas casas que habitamos
os fios de tua barba. Esmero.
Pego tua mão, me afago, viajo
pra ter saudade, me calo,
falo em latin pra requintar meu gosto:
"Dize-me, ó amado da minha alma,
onde apascentas o teu gado,
onde repousas ao meio-dia, para que
eu não ande vagueando atrás dos
rebanhos de teus companheiros".
Aprendo. Te aprendo, homem.
O que a memória ama fica eterno.
Te amo com a memória imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam
uma coisa só: Deus é amor.
Você me espicaça como
o desenho do peixe da guarnição
de cozinha, você me guarnece,
tira de mim o ar desnudo, me faz bonita
de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega,
me dá um filho, comida, enche minhas mãos, o vento,
Eu te amo, homem, exatamente como amo
o que acontece quando escuto oboé.
Meu coração vai desdobrando
os panos, se alargando aquecido, dando
a volta ao mundo, estalando os dedos
pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro
que assim te amo, o que não queria dizer
amo também, o piolho.
Assim, te amo do modo mais natural,
vero-romântico, homem meu,
particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar,
os alvos linhos, a luz na cabeceira,
o abajur prata;
como criada ama, vou te amar, o delicioso amor:
com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso,
me abaixo e lavo os teus pés, o dorso e a planta deles
eu beijo.

[Para o Zé, Adélia Prado]

1.10.08

Vem cá dizer-me que sim.
Ou vem dizer-me que não.
Porque sempre vens assim
P’ra ao pé do meu coração.
[Fernando Pessoa]

30.9.08

O espírito é variável como o vento,
Mais coerente é o corpo, e mais discreto...
Mudaste muitas vezes de pensamento,
Mas nunca de teu vinho predileto...

[Alvares de Azevedo]

29.9.08

Do estilo

Fere de leve a frase... E esquece... Nada
Convém que se repita...
Só em linguagem amorosa agrada
A mesma coisa cem mil vezes dita.

[Mario Quintana]

28.9.08

O meu amor

O meu amor tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca quando me beija a boca
A minha pele toda fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada

O meu amor tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos, viola os meus ouvidos

Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo, ri do meu umbigo
E me crava os dentes

Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz

O meu amor tem um jeito manso que é só seu
De me deixar maluca quando me roça a nuca
E quase me machuca com a barba mal feita
E de pousar as coxas entre as minhas coxas
Quando ele se deita

O meu amor tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios, de me beijar os seios
Me beijar o ventre e me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo como se o meu corpo
Fosse a sua casa

Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz

[O meu amor, Chico Buarque]

27.9.08

Sem ti

E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos, sem luas.

Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.

[Sem ti, Eugénio de Andrade]

26.9.08

Sem Ana, Blues

Quando Ana me deixou - essa frase ficou na minha cabeça, de dois jeitos - e depois que Ana me deixou. Sei que não é exatamente uma frase, só um começo de frase, mas foi o que ficou na minha cabeça. Eu pensava assim: quando Ana me deixou - e essa não-continuação era a única espécie de não continuação que vinha. Entre aquele quando e aquele depois, não havia nada mais na minha cabeça nem na minha vida além do espaço em branco deixado pela ausência de Ana, embora eu pudesse preenchê-lo - esse espaço branco sem Ana - de muitas formas, tantas quantas quisesse, com palavras ou ações. Ou não-palavras e não-ações, porque o silêncio e a imobilidade foram dois dos jeitos menos dolorosos que encontrei, naquele tempo, para ocupar meus dias, meu apartamento, minha cama, meus passeios, meus jantares, meus pensamentos, minhas trepadas e todas essas outras coisas que formam uma vida com ou sem alguém como Ana dentro dela.
Quando Ana me deixou, eu fiquei muito tempo parado na sala do apartamento, cerca de oito horas da noite, com o bilhete dela nas mãos. No horário de verão, pela janela aberta da sala, à luz das oito horas da noite podiam-se ainda ver uns restos dourados e vermelho deixados pelo sol atrás dos edifícios, nos lados de Pinheiros. Eu fiquei muito tempo parado no meio da sala do apartamento, o último bilhete de Ana nas mãos, olhando pela janela os dourados e o vermelho do céu. E lembro que pensei agora o telefone vai tocar, e o telefone não tocou, e depois de algum tempo em que o telefone não tocou, e podia ser Lucinha da agência ou Paulo do cineclube ou Nelson de Paris ou minha mãe do Sul, convidando para jantar, para cheirar pó, para ver Nastassia Kinski nua, perguntando que tempo fazia ou qualquer coisa assim, então pensei agora a campainha vai tocar. Podia ser o porteiro entregando alguma dessas criancinhas meio monstros de edifício, que adoram apertar as campainhas alheias, depois sair correndo. Ou simples engano, podia ser. Mas a campainha também não tocou, e eu continuei por muito tempo sem salvação parado ali no centro da sala que começava a ficar azulada pela noite, feito o interior de um aquário, o bilhete de Ana nas mãos, sem fazer absolutamente nada além de respirar.
Depois que Ana me deixou - não naquele momento exato em que estou ali parado, porque aquele momento exato é o momento-quando, não o momento-depois, e no momento-quando não acontece nada dentro dele, somente a ausência da Ana, igual a uma bolha de sabão redonda, luminosa, suspensa no ar, bem no centro da sala do apartamento, e dentro dessa bolha é que estou parado também, suspenso também, mas não luminoso, ao contrário, opaco, fosco, sem brilho e ainda vestido com um dos ternos que uso para trabalhar, apenas o nó da gravata levemente afrouxado, porque é começo de verão e o suor que escorre pelo meu corpo começa a molhar as mãos e a dissolver a tinta das letras no bilhete de Ana - depois que Ana me deixou, como ia dizendo, dei para beber, como é de praxe.
De todos aqueles dias seguintes, só guardei três gostos na boca - de vodca, de lágrima e de café. O de vodca, sem água nem limão ou suco de laranja, vodca pura, transparente, meio viscosa, durante as noites em que chegava em casa e, sem Ana, sentava no sofá para beber no último copo de cristal que sobrara de uma briga. O gosto de lágrimas chegava nas madrugadas, quando conseguia me arrastar da sala para o quarto e me jogava na cama grande, sem Ana, cujos lençóis não troquei durante muito tempo porque ainda guardavam o cheiro dela, e então me batia e gemia arranhando as paredes com as unhas, abraçava os travesseiros como se fossem o corpo dela, e chorava e chorava e chorava até dormir sonos de pedra sem sonhos. O gosto de café sem açúcar acompanhava manhãs de ressaca e tardes na agência, entre textos de publicidade e sustos a cada vez que o telefone tocava. Porque no meio dos restos dos gostos de vodca, lágrima e café, entre as pontadas na cabeça, o nojo da boca do estômago e os olhos inchados, principalmente às sextas-feiras, pouco antes de desabarem sobre mim aqueles sábados e domingos nunca mais com Ana, vinha a certeza de que, de repente, bem normal, alguém diria telefone-para-você e do outro lado da linha aquela voz conhecida diria sinto-falta-quero-voltar. Isso nunca aconteceu.
O que começou a acontecer, no meio daquele ciclo do gosto de vodca, lágrima e café, foi mesmo o gosto de vômito na minha boca. Porque no meio daquele momento entre a vodca e a lágrima, em que me arrastava da sala para o quarto, acontecia às vezes de o pequeno corredor do apartamento parecer enorme como o de um transatlântico em plena tempestade. Entre a sala e o quarto, em plena tempestade, oscilando no interior do transatlântico, eu não conseguia evitar de parar à porta do banheiro, no pequeno corredor que parecia enorme. Eu me ajoelhava com cuidado no chão, me abraçava na privada de louça amarela com muito cuidado, com tanto cuidado como se abraçasse o corpo ainda presente de Ana, guardava prudente no bolso os óculos redondos de armação vermelhinha, enfiava devagar a ponta do dedo indicador cada vez mais fundo na garganta, até que quase toda a vodca, junto com uns restos de sanduíches que comera durante o dia, porque não conseguia engolir quase mais nada, naqueles dias, e o gosto dos muitos cigarros se derramassem misturados pela boca dentro do vaso de louça amarela que não era o corpo de Ana. Vomitava e vomitava de madrugada, abandonado no meio do deserto como um santo que Deus largou em plena penitência - e só sabia perguntar por que, por que, por que, meu Deus, me abandonaste? Nunca ouvi a resposta.
Um pouco depois desses dias que não consigo recordar direito - nem como foram, nem quantos foram, porque deles só ficou aquele gosto de vômito, misturados, no final daquela fase, ao gosto das pizzas, que costumava perdir por telefone, principalmente nos fins-de-semana, e que amanheciam abandonadas na mesa da sala aos sábados, domingos e segundas, entre cinzeiros cheios e guardanapos onde eu não conseguia decifrar as frases que escrevera na noite anterior, e provavelmente diziam banalidades, como volta-para-mim-Ana ou eu-não-consigo-viver-sem-você, palavras meio derretidas pelas manchas do vinho, pela gordura das pizzas -, depois daqueles dias começou o tempo em que eu queria matar Ana dentro de tudo aquilo que era eu, e que incluía aquela cama, aquele quarto, aquela sala, aquela mesa, aquele apartamento, aquela vida que tinha se tornado a minha depois que Ana me deixou.
Mandei para a lavanderia os lençóis verde-clarinhos que ainda guardavam o cheiro de Ana - e seria cruel demais para mim lembrar agora que cheiro era esse, aquele, bem na curva onde o pescoço se transforma em ombro, um lugar onde o cheiro de nenhuma pessoa é igual ao cheiro de outra pessoa -, mudei os móveis de lugar, comprei um Kutka e um Gregório, um forno microondas, fitas de vídeo, duas dúzias de copos de cristal, e comecei a trazer outras mulheres para casa. Mulheres que não eram Ana, mulheres que jamais poderiam ser Ana, mulheres que não tinham nem teriam nada a ver com Ana. Se Ana tinha os seios pequenos e duros, eu as escolhia pelos seios grandes e moles, se Ana tinha os cabelos quase louros, eu as trazia de cabelos pretos, se Ana tivesse a voz rouca eu a selecionava pelas vozes estridentes que gemiam coisas vulgares quando estávamos trepando, bem diversas das que Ana dizia ou não dizia, ela nunca dizia nada além de amor-amor ou meu-menino-querido, passando dos dedos da mão direita na minha nuca e os dedos da mão esquerda pelas minhas costas. Vieram Gina, a das calcinhas pretas, e Lilian, a dos olhos verdes frios, e Beth, das coxas grossas e pés gelados, e Marilene, que fumava demais e tinha um filho, e Mariko, a nissei que queria ser loura, e também Marta, Luiza, Creuza, Júlia, Débora, Vivian, Paula, Teresa, Luciana, Solange, Maristela, Adriana, Vera, Silvia, Neusa, Denise, Karina, Cristina, Marcia, Nadir, Aline e mais de 15 Marias, e uma por uma das garotas ousadas da Rua Augusta, com suas botinhas brancas e minissaia de couro, e destas moças que anunciam especialidades nos jornais. Eu acho que já vim aqui uma vez, alguma dizia, e eu falava não lembro, pode ser, esperando que tirasse a roupa enquanto eu bebia um pouco mais para depois tentar entrar nela, mas meu pau quase nunca obedecia, então eu afundava a cabeça nos seus peitos e choramingava babando sabe, depois que Ana me deixou eu nunca mais, e mesmo quando meu pau finalmente endurecia, depois que eu conseguia gozar seco ardido dentro dela, me enxugar com alguma toalha e expulsá-la com um cheque cinco estrelas, sem cruzar ¿ então eu me jogava de bruços na cama e pedia perdão à Ana por traí-la assim, com aquelas vagabundas. Trair Ana, que me abandonara, doía mais que ela ter me abandonado, sem se importar que eu naufragasse toda noite no enorme corredor de transatlântico daquele apartamento em plena tempestade, sem salva-vidas.
Depois que Ana me deixou, muitos meses depois, veio o ciclo das anunciações, do I Ching, dos búzios, cartas de Tarot, pêndulos, vidências, números e axés ¿ ela volta, garantiam, mas ela não voltava - e veio então o ciclo das terapias de grupo, dos psicodramas, dos sonhos junguianos, workshops transacionais, e veio ainda o ciclo da humildade, com promessas à Santo Antônio, velas de sete dias, novenas de Santa Rita, donativos para as pobres criancinhas e velhinhos desamparados, e veio depois o ciclo do novo corte de cabelos, da outra armação para os óculos, guarda-roupa mais jovem, Zoomp, Mister Wonderful, musculação, alongamento, yoga, natação, tai-chi, halteres, cooper, e fui ficando tão bonito e renovado e superado e liberado e esquecido dos tempos em que Ana ainda não tinha me deixado que permiti, então, que viesse também o ciclo dos fins de semana em Búzios, Guarajá ou Monte Verde e de repente quem sabe Carla, mulher de Vicente, tão compreensiva e madura, inesperadamente, Mariana, irmã de Vicente, transponível e natural em seu fio dental metálico, por que não, afinal, o próprio Vicente, tão solícito na maneira como colocava pedras de gelo no meu escocês ou batia outra generosa carreira sobre a pedra de ágata, encostando levemente sua musculosa coxa queimada de sol e o windsurf na minha musculosa coxa também queimada de sol e windsurf. Passou-se tanto tempo depois que Ana me deixou, e eu sobrevivi, que o mundo foi se tornando ao poucos um enorme leque escancarado de mil possibilidades além de Ana. Ah esse mundo de agora, assim tão cheio de mulheres e homens lindos e sedutores interessantes e interessados em mim, que aprendi o jeito de também ser lindo, depois de todos os exercícios para esquecer Ana, e também posso ser sedutor com aquele charme todo especial de homem-quase-maduro-que-já-foi-marcado-por-um-grande-amor-perdido, embora tenha a delicadeza de jamais tocar no assunto. Porque nunca contei à ninguém de Ana. Nunca ninguém soube de Ana em minha vida. Nunca dividi Ana com ninguém. Nunca ninguém jamais soube de tudo isso ou aquilo que aconteceu quando e depois que Ana me deixou.
Por todas essas coisas, talvez, é que nestas noites de hoje, tanto tempo depois, quando chego do trabalho por volta das oito horas da noite e, no horário de verão, pela janela da sala do apartamento ainda é possível ver restos de dourados e vermelhos por trás dos edifícios de Pinheiros, enquanto recolho os inúmeros recados, convites e propostas da secretária eletrônica, sempre tenho a estranha sensação, embora tudo tenha mudado e eu esteja muito bem agora, de que este dia ainda continua o mesmo, como um relógio enguiçado preso no mesmo momento - aquele. Como se quando Ana me deixou não houvesse depois, e eu permanecesse até hoje aqui parado no meio da sala do apartamento que era o nosso, com o último bilhete dela nas mãos. A gravata levemente afrouxada no pescoço, fazia e faz tanto calor que sinto o suor escorrer pelo corpo todo, descer pelo peito, pelos braços, até chegar aos pulsos e escorregar pela palma das mãos que seguram o último bilhete de Ana, dissolvendo a tinta das letras com que ela compôs palavras que se apagam aos poucos, lavadas pelo suor, mas que não consigo esquecer, por mais que o tempo passe e eu, de qualquer jeito e sem Ana, vá em frente. Palavras que dizem coisas duras, secas, simples, irrevogáveis. Que Ana me deixou, que não vai voltar nunca, que é inútil tentar encontrá-la, e finalmente, por mais que eu me debata, que isso é para sempre. Para sempre então, agora, me sinto uma bolha opaca de sabão, suspensa ali no centro da sala do apartamento, à espera de que entre um vento súbito pela janela aberta para levá-la dali, essa bolha estúpida, ou que alguém espete nela um alfinete, para que de repente estoure nesse ar azulado que mais parece o interior de um aquário, e desapareça sem deixar marcas.
[Sem Ana, Blues; Os dragões não conhecem o paraíso; Caio Fernando Abreu]

24.9.08

Se

se
nem
for
terra

se
trans
for
mar

[Paulo Leminski]

23.9.08

Os fatos não deixam de existir só porque são ignorados.

[Aldous Huxley]

22.9.08

Ai, quem me dera


Ai quem me dera terminasse a espera
Retornasse o canto, simples e sem fim
E ouvindo o canto, se chorasse tanto
Que do mundo o pranto, se estancasse enfim

Ai quem me dera ver morrer a fera
Ver nascer o anjo, ver brotar a flor
Ai quem me dera uma manhã feliz
Ai quem me dera uma estação de amor...

Ah se as pessoas se tornassem boas
E cantassem loas e tivessem paz
E pelas ruas se abraçassem nuas
E duas a duas fossem ser casais

Ai quem me dera ao som de madrigais
Ver todo mundo para sempre afim
E a liberdade nunca ser demais
E não haver mais solidão ruim

Ai quem me dera ouvir o nunca-mais
Dizer que a vida vai ser sempre assim
E ao fim da espera ouvir na primavera
Alguém chamar por mim

[Ai, quem me dera; Vinícius de Moraes]

19.9.08

Anúncio

Perdeu-se
uma mulher branca,
estatura mediana,
um pouco menor que minha cama,
um pouco maior que meu lençol.
Loira,
feita de trigo e pão,
de presente e de futuro.
Recompensa-se bem
por qualquer informação.

Trajava saia azul
e tinha uma constelação
(ou marca de café)
na barra da saia
que brilhava de noite.

Sinais característicos, alguns
que só eu conhecia
ou reparava neles.

Falava comigo, na língua do pê
e era minha cúmplice
nas viagens e nos portos.

Recompensa-se bem
por qualquer informação,
ainda que seja mentira.

Tinha jeito de quem me amava
mas desapareceu
numa tarde de novembro
sem explicação.
Ou, para ser franco,
explicar, explicou,

eu é que não acredito.

[Anúncio, Sérgio Antunes]

13.9.08

Feliz Aniversário Vovó!

Aquilo que o coração ama fica eterno

[Rubem Alves]



Parabéns vovó pelos seus 84 anos de vida!
Te Amo!

12.9.08

A amizade consigo mesmo é crucial,
porque sem ela não se pode ser amigo de ninguém mais no mundo.


[Eleanor Roosevelt]

6.9.08

O mundo é cheio de coisas mágicas
pacientemente esperando que nossa percepção fique mais aguçada.


[Bertrand Russell]

24.8.08

Técnica é o que você usa quando falta inspiração.

[Rudolf Nureyev]

21.8.08

O que eu espero senhores,
é que depois de um razoável período de discussão,
todo mundo concorde comigo.

[Winston Churchill]

16.8.08

À Caymmi

Gostar de si mesmo, sem egoísmo. Apreciar as pessoas em volta. Cuidar da saúde mental e física. Gostar dos seus horários. Não ficar melancólico, mas guardar na lembrança as melhores coisas da vida. E não abrir mão de ser feliz. A busca da felicidade já justifica a existência.

[Dorival Caymmi]

Hoje ficamos sem Dorival Caymmi

11.8.08

Perto de ti é perto de mim.
E longe de tudo é tua ausência.

[Pablo Neruda]

6.8.08

A inteligência é a beleza à flor da pele

[Millôr]

2.8.08

Eu tenho um fraquinho por ti


Eu tenho um fraquinho por ti
tu não me dás atenção
tu não me passas cartão
quando me ponho a teu lado
tremo nervoso de agrado
e meto os pés pelas mãos
tu vais gozando um bocado
a beber vinho tostão
eu com o discurso engasgado
fico a um canto,
que arrelia
de toda a cervejaria
onde vais rasgar a noite
se te olho com ternura
olhas-me do alto da burra
que mais parece um açoite
é um susto um arrepio
que me malha em ferro frio.

Eu tenho um fraquinho por ti
que me vai de lés a lés
tu dás-me sempre com os pés
quando me atiro enamorado
num estilo desajeitado
disfarço em bagaço e café
tu fumas o teu cruzado
e fazes troça, pois é,
já tenho o caldo entornado
esqueces-me da noite p´ro dia
em alegre companhia
de batidas e rodadas
tu ficas nas sete quintas
marimbas, estás-te nas tintas
p'ra que eu ande às três pancadas
basta um toque sedutor
eu cá sou um pinga-amor.

Eu tenho um fraquinho por ti
que me abrasa o coração
quase me arrasa a razão
a tua risada rasteira
põe-me de rastos,
à beira do enfarte
da congestão
encharco-me em chá de cidreira
mofas de mim
atiras-te ao chão
zombando à tua maneira
lá fazes a despedida
ao grupo que vai de saída
dos amigos da Trindade
mas no fim da noite,
à noitinha, tu ficas triste e sozinha
à procura de amizade
e como é costume teu
chamas o parvo que sou eu.

Afino uma voz de tenor
ensaio um ar duro de macho
quando estás na mó de baixo
quero ver-te arrependida
mas numa manobra atrevida rufia,
muito mansinha,
dás-me um beijo e uma turrinha
que me põe num molho num cacho
estremeço com pele de galinha
e gosto de ti trapaceira
da tua piada certeira
do teu aparte final
do teu jeito irreverente
do teu aspecto contente
do teu modo bestial
noutra palavra mais quente
eu tenho um fraquinho por ti.

[Eu tenho um fraquinho por ti,
Johann Wolfgang von Goethe - Fausto]