8.3.08

Receita de mulher

As muito feias que me perdoem
mas beleza é fundamental. É preciso
que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
qualquer coisa de dança, qualquer coisa
de haute couture em tudo isso (ou então que
a mulher se socialize elegantemente em azul,
como a República Popular Chinesa)
não há meio termo possível. É preciso
que tudo isso seja belo. É preciso que súbito
tenha-se a impressão de ver uma garça apenas
pousada e que um rosto adquira de vez em quando
essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se
reflita e desabroche no olhar dos homens.
É preciso que umas pálpebras cerradas
lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
alguma coisa além da carne: que se os toque
como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
que é preciso que a mulher que está ali
como a corola ante o pássaro
seja bela ou tenha pelo menos
um rosto que lembre um templo e
seja leve como um resto de nuvem:
mas que seja uma nuvem com
olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo.
Olhos então, nem se fala,
que olhem com certa maldade inocente.
Uma boca fresca (nunca úmida!)
é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas,
e as pontas pélvicas no enlaçar de uma cintura semovente
gravíssimo é porem o problema das saboneteiras:
uma mulher sem saboneteiras
é como um rio sem pontes. Indispensável
que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
a mulher se alteie em cálice, e que seus seios
seja uma expressão greco-romana,
mais que gótica ou barroca
e possam iluminar o escuro com,
uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem à caveira e a coluna
vertebral levemente à mostra; e que exista
um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes,
mas bem hajam um certo volume de coxas
e que elas sejam lisas, lisas como a pétala
e cobertas de suavíssima penugem
no entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).
Preferíveis sem duvida os pescoços longos
de forma que a cabeça dê por vezes a impressão
de nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
flores sem mistério. Pés e mãos
devem conter elementos góticos discretos.
A pele dever ser fresca nas mãos,
nos braços, no dorso e na face mas
que as concavidades e reentrâncias tenham
uma temperatura nunca inferior
a 37º centígrados, podendo eventualmente
provocar queimaduras do primeiro grau.
Olhos, que sejam de preferência grandes
e de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra,
e que se coloquem sempre para lá
de um invisível muro de paixão
que é preciso ultrapassar.
Que a mulher seja em principio alta ou,
baixa, que tenha atitude mental dos altos pícaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão
de que se se fechar os olhos
ao abri-los ela não mais estará presente
com seu sorriso e suas tramas.
Que ela surja, não venha; parta, não vá.
E que possua certa capacidade de emudecer subitamente
e nos fazer beber o fel da dúvida.
Oh, sobretudo que ela não perca nunca,
não importa em que mundo não importa
em que circunstancias, a sua infinita volubilidade
de pássaro; e que acaricia no fundo de si mesma
transforme-se em fera sem perder sua graça de ave;
e que exale sempre o impossível
perfume; e deleite sempre o embriagante mel;
e cante sempre o inaudível canto
da sua combustão; e não deixe
de ser nunca a eterna dançarina
do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
constitua a coisa mais bela e mais perfeita de
toda a criação miserável.

[Receita de mulher, Vinícius de Moraes]

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